Aquarius (2016) - Análise - Memórias, lembranças e o retrato do Brasil da atualidade!
Por: Rudnei Ferreira
O cinema brasileiro ainda é visto com preconceito por muita gente. Vários questionam a qualidade dessas produções, alegando que o Brasil só sabe fazer filme ruim, o que é uma grande injustiça. De fato, muitos filmes produzidos no nosso país são de dar vergonha. Já outros, nos dão muito orgulho de saber que foram feitos em território nacional. Porém, vamos focar nas produções boas. Afinal, filmes como ''Tropa de Elite'', ''O Auto da Compadecida'', ''As Boas Maneiras'' e o aclamado ''Central do Brasil'' são exemplos de longas que servem para quebrar de vez o preconceito de que o cinema nacional só faz filmes ruins. Claro, com certeza são filmes que não agradam a todos, mas isso não muda o fato de que são produções muito boas e de qualidade. Além disso, produções como os dois ''Tropa de Elite'' vão além de um simples entretenimento. Eles fazem grandes críticas sociais sobre a realidade do Brasil em geral.
Kleber Mendonça Filho é um cineasta brasileiro que adora abordar questões realistas e críticas construtivas e relevantes em seus filmes que exploram o ser humano como um todo. Ele fez isso de maneira competente no seu filme de 2012 ''O Som ao Redor'' e também no longa de 2019 ''Bacurau'', que apesar de ser o filme mais fantasioso dele, ainda assim explora temas bem realistas e críticos. Depois de ''O Som ao Redor'' e antes de ''Bacurau'', Kleber trouxe para as telas ''Aquarius'', um filme forte, polêmico e muito interessante cujo o roteiro é cheio da ideologia do diretor pernambucano e que vale a pena conferir, sendo mais um bom exemplo de cinema brasileiro de qualidade.
O filme se concentra em Clara (Sônia Braga), uma escritora viúva que vive em um apartamento do edifício Aquarius, localizado próximo a praia da Boa Viagem, na capital pernambucana. Saudosista e apegada a sua história, ela procura se adaptar a modernidade da sociedade atual. Um belo dia, ela recebe a proposta de uma construtora para comprar o seu apartamento, já que a intenção de seus proprietários é demolir o prédio para se dedicar a um novo empreendimento. Clara recusa a proposta e fará o que for preciso para se manter nesse lugar que carrega suas lembranças e história.
Com um roteiro muito bom e muito bem escrito, ''Aquarius'' tem como principal tema o poder das lembranças e como elas são importantes para construir a história de uma vida. Ao acompanharmos a jornada da personagem de Sônia Braga, mergulhamos nas nossas próprias memórias e na nossa própria história. Kleber Mendonça Filho ressalta e valoriza em seu texto a importância de se preservar tudo isso. Afinal, nossa história e nossas experiências são o que nos define, e querendo ou não, todo mundo tem algo para contar sobre si mesmo, mesmo que não venha a contar para ninguém. É um filme que se desenvolve através de situações e momentos, de maneira calma, sem pressa e organizada. E é justamente isso que torna a trama tão envolvente e interessante pois o roteiro leva o tempo necessário para desenvolver sua história e principalmente seus personagens, com destaque, é claro, para a protagonista. Um belo desenvolvimento, onde Kleber Mendonça Filho trabalha com a mais perfeita naturalidade, realismo e sem pudor nenhum, quase como se o filme fosse uma espécie de documentário sobre história, lembranças e o comportamento humano. Esse é o cinema proposto pelo cineasta pernambucano. Um cinema realista e cabeça, cujo o elemento mais humano e realista da trama e de seus personagens é bastante explorado e aprofundado. E isso é contado através de capítulos, três para ser mais exato, no mesmo estilo narrativo utilizado em ''O Som ao Redor'', porém de maneira mais objetiva e menos metafórica e alegórica em relação ao longa de 2012. Nesse ponto, ''Aquarius'' é um filme muito mais objetivo em sua proposta, porém, não deixa de ser menos inteligente.
Por todo esse contexto descrito acima, ''Aquarius'' é um filme que pode dividir a opinião do público. Por se tratar de uma história com o máximo grau de realismo possível, Kleber Mendonça Filho não poupa o espectador em vários momentos, como por exemplo as cenas de nudez e sexo que podem chocar os mais conservadores, e nem por isso elas estão lá a toa, pois fazem parte de um contexto pertinente e necessário para tudo que gira em torno da protagonista. Os diálogos são muito afiados e realistas. Alguns deles muito marcantes e outros são como um verdadeiro tapa na cara. A jornada de Clara poderia e pode ser vivida por qualquer pessoa e isso é o que traz ainda mais impacto ao filme, pois é tudo muito real, o que torna muito mais fácil de se identificar e refletir sobre o seu conteúdo.
E não para por ai, pois o diretor não se intimida em inserir na história de sua protagonista uma rica e construtiva crítica social sobre o poder do capitalismo e como ele é capaz de passar por cima de quem for necessário para alcançar os seus objetivos. No fim, o que importa é lucrar e enriquecer, sem realmente se importar no mal causado para chegar a isso. ''Aquarius'' não lida apenas com a história da vida. É também a dramatização de uma realidade nua e crua presente no Brasil atual que muitos se recusam enxergar e aqueles que são vítimas dessa realidade não conseguem escapar e muito menos esquecer. É nítido o conteúdo politico presente na história e muito do que vemos em cima desse tema vem da opinião pessoal do próprio cineasta. E para bom entendedor, meia palavra já basta. Aplaudido por uns e rejeitado por outros, mas, na opinião desse que vos escreve, mais um ponto genial e muito inteligente do roteiro, pois é incrível que um filme feito para a situação política do pais em 2016 possa ser tão atual e relevante em pleno 2021, comprovando que nada mudou até agora.
O filme possui uma qualidade técnica de dar orgulho a qualquer bom apreciador do cinema nacional e também do cinema como a arte magnífica que ele é. Kleber Mendonça Filho tem um olho atento e afiado para os detalhes. Seus planos de câmera são elegantes, com boa movimentação e closes chamativos, seja para mostrar algo do ponto de vista da protagonista ou simplesmente para exibir algo como ponto de vista do espectador. A cinematografia é muito bonita, explorando alguns dos mais belos pontos da cidade de Boa Viagem, com planos abertos e amplos dos locais. A boa edição das cenas capta o melhor da direção, onde as cenas se encaixam e completam muito bem um determinado acontecimento ao outro. É feito também um bom trabalho de fotografia e iluminação, deixando tanto as cenas do passado quanto as do presente esteticamente muito bonitas. A trilha sonora é de extrema importância para a história pois as músicas tocadas fazem parte da composição e desenvolvimento da protagonista. O filme deixa claro que várias dessas músicas fizeram parte da vida de Clara, ilustrando momentos importantes. E os apreciadores da boa música não sairão decepcionados, pois o repertório musical inclui nomes como Queen, Roberto Carlos, Gilberto Gil e Maria Bethânia. Basicamente é o diretor mostrando que tem bom gosto musical. E ver a protagonista curtindo cada um desses artistas nos dá uma sensação de inegável satisfação. Afinal, bom gosto musical e músicas de qualidade estão cada vez mais difíceis de ver nesse nosso país, o que é lamentável.
E por falar da protagonista, é impossível não enaltecer a presença marcante de Sônia Braga, naquela que é provavelmente uma das melhores performances de sua carreira como consagrada atriz. Sua atuação é hipnótica, carregada de beleza, empoderamento e elegância. Quando a câmera está nela, parece que desaparece, pois a atriz está tão bem e tão entregue em seu trabalho que em vários momentos simplesmente deixa de ser Sônia Braga para se tornar Clara, com muito entusiasmo e convicção. Sua personagem sofre com a solidão e com a dificuldade de lutar pelo seu lar, um lar marcado pelas lembranças. Seus dramas pessoais são muito críveis mas, ainda assim, ela convence como uma mulher forte, decidida e respeitável. E o diretor faz questão de exibir e louvar o talento e a imagem da atriz formidável que ela é. Inquestionavelmente, uma das figuras femininas mais marcantes do cinema nacional. Ela lidera um elenco talentoso e igualmente comprometido, mas que em vários momentos é ofuscado pela veterana atriz, o que não poderia ser diferente.
''Aquarius'' é um filme polêmico e com um conteúdo forte, mas extremamente inteligente com esse conteúdo, sendo muito bem realizado. Kleber Mendonça Filho faz aqui um trabalho bem superior de direção e roteiro, um trabalho que só fica completo com o talento e presença de Sônia Braga. É mais uma boa aquisição ao nosso cinema e merece ser conferido pelos apreciadores do mercado nacional cinematográfico, onde é difícil sair indiferente quando os créditos finais aparecem na tela.
Nota: ★★★★★★★★★ 10
AQUARIUS (2016) - Nacional/Drama, 146 minutos. ESCRITO E DIRIGIDO POR: Kleber Mendonça Filho. ELENCO: Sônia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Zoraide Coleno, Fernando Teixeira, Bárbara Colen, Carla Ribas, Julia Bernat, Pedro Queiroz, Thaia Perez, Allan Souza Lima. CLASSIFICAÇÃO: 16 anos. NOTA NO ROTTEN TOMATOES: 97%
CURIOSIDADES:
* ''Aquarius'' é o segundo filme escrito e dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho. O primeiro foi ''O Som ao Redor'' (2012)
* As filmagens duraram sete semanas e ocorreram em vários pontos de Recife.
* O longa é até hoje lembrado por uma polêmica onde o diretor e seu elenco promoveram um protesto durante o Festival de Cannes contra o processo de Impeachment da até então presidente Dilma Rousseff.
* Falando em Cannes, o longa foi selecionado para concorrer a Palma de Ouro no festival, além de ser o vencedor em outros prêmios muito importantes dentro do meio cinematográfico.
* Originalmente, ''Aquarius'' havia recebido a classificação indicativa de 18 anos. Porém, o diretor Kleber Mendonça Filho recorreu a essa decisão e conseguiu reduzir a classificação para 16 anos.
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